No Dia da Luta Contra o Cancro, o DN conta três histórias de sucesso. De Diogo, o “duro”, Dolores, com a sua “genica”, e José, livre há 15 anos
Dolores Araújo tinha 53 anos quando aquilo lhe aconteceu. Acabada de chegar a casa, vinda do quintal, apercebeu-se de um fiozinho de sangue, a escorrer na perna direita. “Não liguei muito”, confessa. “Pensei que me tinha picado, ou assim.” Mas uma semana depois tornou ao mesmo: o mesmo fio de sangue, a brotar de um pequeno sinal, abaixo do joelho. “Nessa época, morávamos ao pé de uma clínica em Mem Martins e, por acaso, nessa tarde estava lá a dermatologista, marquei consulta”, conta o marido, Manuel Araújo.
Na altura não podiam saber, mas aquele era o início de uma longa batalha contra o cancro, que ainda prossegue. Uma luta feita de muitas cirurgias – sete, bem contadas – e inúmeros tratamentos de quimioterapia e radioterapia. Uma luta cheia de incertezas, com alguns sustos – numa das operações, Dolores teve uma paragem cardiorrespiratória, “estive vários minutos morta, mas não vi nenhuma luz”, esclarece num aparte – mas também com muita resistência. Para ela, a palavra é genica.
“Tive sempre muita genica”, repete. “Nunca desisti, nunca entrei na tristeza. Para não pensar, fazia renda, bordava, fiz muitas toalhas e quadros. A maior parte dei a pessoas amigas.”
Na parede da sala, aponta a moldura com a imagem colorida de um arranjo de flores, sobre um fundo branco. “Fiz 28 daqueles, todos bordados. Pequenos, grandes, de vários tamanhos. Fiquei com aquele para mim.” Cheio de cor na sua moldura, ele é uma testemunha o seu combate.
Uma população em crescimento
Hoje com 70 anos, Dolores Araújo é uma das 400 mil pessoas que em Portugal já tiveram uma doença oncológica e sobreviveram, continuando, ou não, em tratamentos – no seu caso, que é raríssimo, e que desafia todas as estatísticas de sobrevivência, as terapêuticas prosseguem. Ela sabe da sua situação singular. “Os médicos admiram-se comigo.”
Mas os números não ficam por aqui. “Se contabilizarmos só as pessoas que tiveram uma doença oncológica e que já estão livres de tratamentos há mais de cinco anos, estamos a falar de 200 mil”, explica Nuno Miranda, coordenador do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas e médico da Unidade de Transplantes do IPO de Lisboa.
“Esta população tem aumentado em Portugal, como em todos os países ocidentais, devido ao sucesso crescente dos tratamentos, e a tendência é para que continue a aumentar no futuro”, sublinha o especialista. E explica: “Estima-se que em 2030 um cada mil adultos seja um sobrevivente de uma doença oncológica surgida até aos 18 anos.”
Esse é um futuro cheio de desafios para o sistema de saúde e para a própria sociedade, reconhece o médico. Mas lá iremos, a esses desafios. Antes disso, Nuno Miranda quer deter-se na palavra sobrevivente que, aplicada à área da oncologia, não lhe agrada. Confessa que não tem designação melhor, pelo menos para já, mas há aqui algo mais a dizer, nem que seja para reflexão coletiva.
“Não gosto do termo, porque dá a ideia de que se trata de uma coisa rara, só que em relação ao cancro a noção de sobrevivência aplica-se cada vez menos”, explica. “Ter tido cancro e estar vivo é uma situação cada vez mais comum, por isso não gosto do tom de exceção que a palavra implica.” Mas pronto, não há ainda designação alternativa e, por outro lado, “este é o termo internacional, temos de usá-lo”, reconhece.
À procura das melhores respostas
Quanto aos desafios que aí vêm, Nuno Miranda não tem dúvidas: estão aí à porta e é preciso pensar nisso e preparar respostas, tanto na saúde como na integração social destas pessoas.
“Há questões médicas particulares para esta população, que estão relacionadas com toxicidades tardias dos tratamentos”, afirma o médico, sublinhando que “algumas destas toxicidades são bem conhecidas, mas outras nem por isso, nomeadamente as que dizem respeito aos novos fármacos. Porque são novos, não conhecemos o que se vai passar a longo prazo”.
As toxicidades bem estabelecidas são, por exemplo, as que estão relacionadas com problemas de fertilidade, que são hoje um grande desafio para a medicina, ou a toxicidade hormonal, que causa problemas de hipotiroidismo e défices de crescimento, ou ainda outro tipo de problemas, cardíacos e pulmonares. Pior ainda: por vezes o cancro volta ou ressurge noutro ponto do corpo.
São “as segundas e terceiras neoplasias”, eventualmente por alguma fragilidade genética, estilo de vida menos favorável, ou pelos próprios tratamentos, “que também aumentam os riscos, tanto pela diminuição das defesas como por eventuais lesões que provocam no material genético”, esclarece Nuno Miranda. A tudo isto o sistema de saúde tem de atender, conseguir acomodar, e o certo é que já há caminho andado.
“Estamos a começar a construir algumas respostas e a montar o que designamos clínicas de sobreviventes, com consultas dedicadas a estas pessoas. Aqui, no IPO, temos uma série delas”, adianta Nuno Miranda.
Exemplos? Há vários. Um deles é a consulta dos DUROS, a sigla feliz de Doentes que Ultrapassaram a Realidade Oncológica com Sucesso. A consulta foi criada pelo Serviço de Pediatria do IPO de Lisboa, em março de 2007, e segue desde então os jovens e adultos que já estão há cinco anos, ou mais, sem sinais de doença oncológica, depois de terminada a terapêutica. O objetivo é a vigilância a longo prazo, não só para melhorar a qualidade de vida das pessoas mas também para adquirir mais conhecimentos sobre os tratamentos e os seus efeitos secundários tardios, com vista à melhor adequação das terapêuticas.
Diogo Costa, 24 anos, que vamos conhecer mais daqui a pouco, é um desses “duros” para quem “o dia de ir ao hospital é diferente de todos outros que há no ano”, como ele diz.
“Revivem-se memórias e reveem-se pessoas que são inexcedíveis e excecionais pela forma como trabalham e pelo que fazem por nós”, diz, convicto. “São pessoas que me marcaram e, tenho a certeza, marcaram outros miúdos, e os pais.” Por todos os motivos, e por este também, Diogo sabe que vai continuar a ser um “duro”. “Irei sempre à consulta enquanto puder. Salvaram-me, devo–lhes a vida. Aos médicos, aos enfermeiros, à pessoa que está no raio X, a todos.”
A par dos DUROS da pediatria, o IPO de Lisboa tem, com esta mesma filosofia de seguimento das pessoas que tiveram cancro, uma consulta de sobreviventes na hematologia, outra de longo prazo na unidade de transplante, uma outra dedicada aos potenciais doentes de toxicidades tardias, ou ainda a consulta no serviço de neurologia para os sobreviventes de tumores do sistema nervoso central.
“Começa-se a construir um esqueleto do que no futuro terá de ser uma rede mais estruturada, para responder a estes desafios”, resume Nuno Miranda. E o maior de todos eles , acredita o especialista, é o que diz respeito “às pessoas que tiveram cancro em idades mais jovens, ou durante a vida ativa, e que têm menos de 65 anos”.
Os mais idosos, justifica, não têm o mesmo tipo de problemas sociais ou de integração laboral, porque estão reformados, ou de futuro a longo prazo. “Já a população mais jovem coloca-nos desafios muito complicados, que estamos agora a conseguir acomodar, mas para os quais vamos ter que ter mais estrutura a prazo”, garante.
Esta é, aliás, uma questão que está hoje em debate por toda a Europa: a forma como tudo isto deve ser feito e articulado nos sistemas de saúde. “Neste momento, não há boas soluções, apenas embriões de estruturas que têm muito caminho para andar, para se conseguir fazer várias coisas ao mesmo tempo em articulação com os cuidados primários, porque os problemas desta população passam depois a ser de cuidados de saúde primários”.
17 anos com um melanoma
Não é ocaso de Dolores Araújo, que continua em tratamento para o melanoma que, naquele dia já longínquo de 2000, foi a suspeita imediata da dermatologista na clínica de Mem Martins. “Mandou-me para o IPO”, recorda Dolores.
No dia 30 desse ano – nem ela nem o marido esquecem a data -, lá foram os dois. Mas as notícias não podiam ser piores. Dolores tinha um melanoma, o cancro de pele mais agressivo. A remoção é feita por cirurgia e quando há metástases o prognóstico é sempre desfavorável e, em geral, rápido. “Deram-me ano e meio de vida”.
Isto foi há 17 anos, e ela aí está: cozinha, continua a fazer bordados e renda, põe a roupa a lavar, trata da horta na casa que têm em Marinhais, perto de Salvaterra de Magos. E no IPO, continua os tratamentos, porque a sua doença não tem cura, e ela e os médicos não baixam braços. De tal maneira que ainda agora está a participar num ensaio clínico internacional – e já não é o primeiro -, enquanto doente do instituto.
“Sou uma cobaia”, diz, séria. A palavra não lhe faz diferença, nem lhe mete medo, até porque a terapêutica que está agora a fazer, de duas em duas semanas – começou em 2015 e vai terminar em breve, em abril -, não lhe causa muito mal-estar. “Fico mais murchita no primeiro dia, e no segundo, e tenho mais frio, mas ando bem.”
Nos intervalos das idas ao IPO, o seu escape é a horta em Marinhais. “Ponho as mãos à terra, as mãos mesmo, não é com o sacho, e é ali que descarrego”, diz. Planta de tudo: alfaces, favas e ervilhas, alho-francês, tomates, couves-galegas. “Temos também laranjas e limões, e não uso químicos nenhuns”, garante.
Cá ou lá, o marido está sempre por perto. Leva-a ao hospital e trá-la. Acompanha-a nas voltas para fazer os exames, ir à consulta e aos tratamentos e, em casa, é ele que estende a roupa e que às vezes faz as refeições.
Depois de cada operação – e Dolores fez sete, quase todas nos primeiros três anos depois do diagnóstico -, no regresso a casa, meses e meses acamada, era também o marido quem lhe mudava o penso e lhe dava injeções. “Fui auxiliar de enfermagem quando estive na tropa, para mudar o penso não precisávamos de lá ir”, conta ele.
Para ambos, é um dia de cada vez. E cada novo dia, apesar de todo o desgaste e cansaço, é um motivo de gratidão. “A vida tem-nos pregado grandes partidas”, desabafa Dolores, e, afinal, nem sequer foi naquele dia, há 17 anos, que tudo mudou nas suas vidas .”Foi antes. Dois anos e meio antes, quando o nosso filho mais novo, de 28, morreu com um tumor na cabeça. Ficou uma grande mágoa, que não vai embora.”
“Quando me sentia bem, estudava”
Aos 12 anos, Diogo Costa já era atleta federado. Fazia natação na equipa da SFUAP, a Sociedade Filarmónica União Artística Piedense, e foi talvez por isso que aquele alto no tórax se tornou de repente mais visível. “Nunca me doeu nem me impedia os movimentos, mas estava ali, e foi aumentando.”
Foi ao médico, mas os exames não eram conclusivos. “Fiz tudo. Ecografias, raios-X, ressonância magnética, biopsias, até que, do Hospital Garcia de Orta, me mandaram para o IPO”, conta Diogo.
Foi lá que se percebeu, finalmente, o que aquilo era, seis meses depois de ter dado pela primeira vez com o alto no peito. Mas foram necessárias 12 biopsias num só dia para acertar com o mais inesperado dos diagnósticos: um sarcoma de Ewing, um tumor raro, muito agressivo e com mau prognóstico, que no caso de Diogo era inoperável, tal a sua dimensão. “Já estava dentro do pulmão, perto do coração, era uma massa equivalente a três bolas de ténis.” A única hipótese era fazer uma quimioterapia agressiva e radioterapia, para reduzir o tumor e torná-lo operável.
Foram tempos muito difíceis. “Penso que foi pior para os meus pais, eu era um miúdo”, reflete. “E a minha mãe teve de deixar de trabalhar para me acompanhar. Com a idade que eu tinha na altura, era impossível não ter alguém sempre comigo.”
Durante ano e meio a rotina foi dura, sempre a mesma: uma semana de internamento para a quimioterapia, três em casa a recuperar, com um período de maior isolamento para evitar infeções – “tive muitas, e lá íamos de volta ao IPO”, recorda ele -, cuidados extremos com a alimentação e, alguns dias, poucos, para ir à escola, sobretudo para os testes.
Apesar da gravidade da situação e dos tratamentos desgastantes, Diogo nunca perdeu um ano. “Fui sempre bom aluno e quando me sentia bem, como não tinha nada para fazer, estudava”, conta.
A escola e os professores, reconhece, também “foram muito compreensivos”, acomodavam os testes à sua disponibilidade. “Toda a gente via o meu empenho.” E não só no estudo mas também na luta contra a doença. “Foi sempre esse o meu espírito, apesar de às vezes sentir raiva. “Porquê eu?”, perguntava–me. Mas sabia que ir por aí era um beco sem saída, portanto só havia uma maneira: fazer o que havia a fazer.”
Depois veio a operação, que durou 16 horas, e foi um sucesso. “O Dr. Gentil Martins, que me operou, explicou-me depois que me tinham tirado parte do pulmão esquerdo e quatro costelas, que foram substituídas por próteses, e que tinham removido todos os vestígios do tumor.” Boas notícias, apesar de aqueles terem sido tempos marcados pelas dores, que ele recorda “insuportáveis” nos primeiros tempos após cirurgia.
Depois, lentamente, foi a recuperação e o regresso aos tão amados desportos: a natação – “acabou por ser a minha fisioterapia”, garante -, o bodyboard, um dos preferidos, o ginásio e o futebol com os amigos. Mas foi preciso ir devagar, passo a passo. “A primeira coisa foi tentar encher um balão, levei três meses. Depois, descer as escadas e atravessar a rua, foram 15 dias. E depois a piscina.” Hoje não nota grande diferença no seu desempenho, a não ser com algum movimento mais puxado no bodyboard. “Mas não me impede de fazer nada.”
Profissionalmente as coisas também correm bem. Mais uma vez, Diogo empenhou-se ao máximo. Regressado em pleno à escola, já no secundário, participou no projeto Parlamento dos Jovens e a sua proposta destacou-se de tal maneira que acabou por ser escolhido como “deputado” representante de Portugal no Parlamento Jovem, em Bruxelas. Tinha 17 anos, precisou da autorização por escrito dos pais, mas foi “uma experiência fantástica”, que ainda por cima lhe mostrou o que estudar: Direito. Agora, está a acabar o estágio num escritório de advogados, em Almada, prepara o último exame para Ordem e, sempre com o mesmo empenho, candidatou-se à Polícia Judiciária, de que espera os resultados.
A história de Diogo, com um desfecho feliz, é um bom exemplo do sucesso que já se consegue nas terapias do cancro nos doentes mais novos.
“Na pediatria, a taxa de cura anda hoje entre os 70% e os 80%, e ainda podemos melhorar mais um bocadinho e chegar aos 85%”, explica Nuno Miranda, sublinhando que “o cancro pediátrico é, à partida, uma doença rara”.
Na prática, surgem 400 novos casos por ano em todo o país. Desses, 320 acabam por ser curados – os tais 70% a 80%. “Em 20 anos, saltámos de 50% para 80% de sucesso nas terapias destes cancros, e ainda não estamos satisfeitos”, garante o médico.
Esta evolução favorável é mais visível nas idades mais jovens, mas não é um exclusivo seu. Rastreios mais sistemáticos, novas capacidades de diagnóstico e terapêuticas mais eficazes permitem que mais pessoas debelem o cancro e que essa população de sobreviventes continue a aumentar. Esse é também o resultado de várias décadas de uma intensa investigação básica sobre os processos do cancro, a nível molecular, celular e dos genes.
“Durante muitos anos esse conhecimento não teve qualquer impacto em termos de resultados para os doentes, agora estamos a fazer a colheita dessa investigação. Estamos a beneficiar numa geração, o que se semeou durante várias”, diz Nuno Miranda.
“Foi bom, talvez, não ter sabido”
José Simões Augusto, 58 anos, é um desses casos de sucesso. Faz parte daquele grupo de 200 mil pessoas em Portugal que tiveram uma doença oncológica e que estão há cinco anos, ou mais, livres da doença e de tratamentos. No seu caso, já lá vão 15 anos. Mas a verdade é que só há pouco tempo é que ele soube que tinha tido um cancro. “Foi por ouvir conversas na família”, diz.
Olhando agora para trás, e pensando em tudo aquilo por que passou – meses a sentir-se mal e a correr Ceca e Meca, dos naturistas para os médicos, e depois a operação difícil, no IPO -, José Augusto acredita que “foi, talvez, bom não ter sabido na altura” o que tinha.
A emoção turva-lhe a voz quando se recorda das palavras do médico do hospital de Castelo Branco, onde acabou por ser internado, para fazer exames. “O Doutor Eduardo disse-me assim: há aqui uma infeçãozita e é preciso ir para um hospital em Lisboa para tratar disto.”
A infeçãozita era afinal um tumor no abdómen, que foi preciso remover, juntamente com a vesícula, o apêndice e uma pequena parte do intestino.
Pouco depois, já recuperado e confiante, José Augusto voltou ao ativo – trabalha por conta própria no setor da construção – e desde então faz uma vida normal, hoje já com a consciência da gravidade da doença que teve. Mas isso não lhe afeta o humor.
Uma vez por ano vai à consulta ao IPO e não esquece “a forma excecional” como foi tratado pelos médicos, nem a forma como o atendem sempre que lá vai à consulta anual. “Há uns quatro ou cinco anos, exagerei a comer umas azeitonas que tinha trazido lá da terra [Oleiros], e comecei a sentir as mesma coisas que sentia antes de ser operado. Assustei-me, telefonei para o médico e ele mandou-me lá ir logo no dia seguinte.” Felizmente não era nada, só azeitonas a mais. “Desde aí, nunca mais exagerei”, garante.
A filha, Maria, tinha 2 anos quando a doença do pai abalou a família, e por isso pouco se lembra disso. Mas está consciente do que se passou e vai também às consultas com o pai. Conhece os médicos e o hospital, concorda que “são fantásticos”. Por isso, tem um projeto a curto prazo: ser voluntária no IPO, “para ajudar no que puder”.
Diário de Notícias